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4º Conjus: Profª Viviane Vidigal analisa trabalho uberizado e justiça digital na Era 4.0

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Será que o advento das novas tecnologias representa novo ‘adeus ao trabalho’? Em sua palestra, a professora fez um balanço dos impactos das mudanças tecnológicas para a classe trabalhadora
Viviane Vidigal 750x510
O ciclo de palestras do 4º Conjus (Congresso dos Trabalhadores do Poder Judiciário de Sergipe) foi aberto com Viviane Vidigal, docente da Unicamp, mestra e doutoranda em Sociologia. O auge de sua apresentação foi a provocação sobre um possível “adeus ao trabalho”. Como resposta, a professora indicou alguns apontamentos que fomentaram o debate coletivo dos servidores do Tribunal de Justiça de Sergipe.

Viviane também é pós-graduada em Direito do Trabalho pela Unisal e integrante do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT), do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e do Núcleo de Estudos ‘O Trabalho Além do Direito do Trabalho’. Além disso, é autora de alguns livros, entre eles a ‘Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0’.

“A frase ‘Adeus ao Trabalho’, do professor Ricardo Antunes, nos traz outras questões: será que com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação estaríamos vivendo um novo adeus ao trabalho? Será que o ser humano será substituído pelas máquinas?”, perguntou. Em seguida, a professora falou sobre os impactos da tecnologia no trabalho. Em um primeiro momento, ela abordou o advento das novas tecnologias, na classe trabalhadora; depois, ela analisou a Justiça Digital e as implicações do uso da tecnologia no Judiciário.


Quando tudo começou

A professora explicou que a revolução tecnológica ganhou corpo entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Mas segunda ela, Karl Marx já acusava a maquinaria de “roubar”, do trabalhador, a habilidade artesanal sobre o produto do trabalho. Num segundo momento, as máquinas tornaram-se ainda mais autônomas, dependendo do acionamento de alguns botões para colocar em andamento toda produção.

Nas palavras de Viviane, “assim, foram criadas as chamadas ‘máquinas de fazer máquinas’. Não era mais necessária a habilidade, por exemplo, de moldar chapa. Esses e outros conhecimentos foram transferidos para os chips dentro das máquinas. Hoje, o que nós fazemos? Clicamos nos ícones dos nossos aplicativos. Todo esse conhecimento está embutido no que conhecemos como algoritmo. E essa transformação tecnológica é, na verdade, o fruto de um longo processo de pesquisa e desenvolvimento vinculados ao processo de computação, surgido na década de 1930”.

A pesquisadora descreve como autores relataram como se deram o processo histórico de automação e de aperfeiçoamento tecnológico do controle numérico, considerado a ‘grande virada’ na reorganização de todo o processo moderno de trabalho. Seria com base nessas transformações, aceleradas e aperfeiçoadas pela tecnologia de informação, que alguns pensadores da sociedade pós-industrial teriam empreendido esforços de tentar compreender de que maneira essa nova base estaria modificando a estrutura social.

“Pois, afinal, qual o papel dessa tecnologia? Ela é neutra? Nas décadas de 60 e 70 existia uma visão determinista desse processo, que ele causava mudanças na estrutura social, só que esta percepção não levava em conta o conceito de poder na produção dessa própria tecnologia”, observou a palestrante. “Para eles, era uma coisa mística, que surgia do nada, livre dos conflitos da sociedade na qual ela é produzida”, destacou a professora da Unicamp.

Outros autores discordam dessa possibilidade de alteração social. É que as tecnologias refletiriam, nessa perspectiva, as relações de poder já existentes na sociedade. E por esse motivo, na avaliação de Viviane Vidigal, a tecnologia apareceria como maleável, passível e possível de ressignificações. “Nós, seres humanos, podemos modular o uso da tecnologia. Seja em favor do capital, do capitalista, seja em favor do trabalho humano ou a dignidade de quem trabalha”, defendeu.

Com o advento da Indústria 4.0 ou quarta revolução industrial, novas práticas de organização do trabalho, mediadas e controladas por aplicativos, passaram a ser formuladas e implementadas. “Essa adoção de aplicativos, baseadas em cálculos e algoritmos, em diferentes processos produtivos, possibilitou aumentar a capacidade das empresas em armazenar e analisar os dados sobre as tarefas realizadas pelos trabalhadores e trabalhadoras”, diz a palestrante.

A professora também citou outra obra do pesquisador e professor Ricardo Antunes, o livro 'O privilégio da servidão'. Ele sustenta, na visão da pesquisadora, que ao contrário do que foi propugnado por uma bibliografia apologética, que vislumbrava esse mundo criativo do trabalho, “com o advento dos smartphones, iPads, iPhones, algoritmos, inteligência artificial, big data, internet, entre as quais, o 5G, o que se está confirmando com estudos, na verdade, é o exato inverso”.

Nesse sentido, quando analisada a concretude do trabalho contemporâneo, segundo a pesquisadora, as novas tecnologias de informação estariam promovendo o fim do trabalho humano, tal como foi aventado por teóricos. “Quando a gente olha e pesquisa, vai a campo, constata que essas tecnologias estão provocando uma maior exploração da classe trabalhadora”, afirmou.

Segunda ela, ainda em “O privilégio da servidão”, Ricardo Antunes usa como fio condutor o debate sobre a expansão do novo proletariado de serviços, que passa a compor a morfologia do trabalho na era digital e a requerer uma reconfiguração das forças sociais, sindicais e políticas na busca de um novo projeto societal socialista. Para Antunes, a era digital não anuncia o fim do trabalho assalariado, mas reconfigura as formas de trabalho produtivo gerador de valor, na esfera material e imaterial.

Como saída a essa investida informacional do capital, Viviane aponta para a necessidade de reaproximação entre as forças da classe trabalhadora, sua representação e a vida cotidiana de homens e mulheres que vivem do trabalho.


O empreendedor sem direitos e escravo da meritocracia

A transformação do trabalhador em prestador de serviço é outra perversidade do sistema, na avaliação da professora Vidigal. A motivação por trás dessa ‘transfiguração’ não poderia ser mais mal-intencionada: fazer com que o empregado não tenha acesso a segurança que é garantida pela legislação trabalhista.

Segundo a pesquisadora, cria-se essa condição de ser um trabalhador ou trabalhadora não subordinada, inventando uma ‘alquimia’ capitalista, porque as gerências dessas plataformas se apropriam simbolicamente desse discurso do empreendedorismo como modelo de excelência e superação, tornando-o ferramenta importante para que as empresas preguem aquele discurso competitivo para que siga produzindo ininterruptamente.

“Porque esse é o interesse do capitalista, ter o empregado todo o tempo disponível para atender as demandas e fazendo a engrenagem da máquina rodar com mais velocidade. Nessas condições, a racionalidade neoliberal submete quem trabalha a um regime de competição em todos os níveis. Com isso, a capacidade de empatia de um trabalhador e outro, de uma trabalhadora e outra, rui. E isso impossibilita uma união, uma formação de resistência contra tal ideário”, declarou Viviane.

Em arremate, sentenciou que “ainda pode se somar essa a análise o discurso da empregabilidade, que desloca o eixo de responsabilidade de geração de oportunidade de trabalho, da sociedade para o indivíduo, por intermédio, muito frequentemente, da meritocracia. E aí, essa luta de classes se transforma em uma luta por si só. Consigo mesma. A pessoa que fracassa, que não alcança os índices aos quais é submetido, que não tem direitos, culpa só a si, se envergonha e acaba não questionando a sociedade. Então, essa ‘liberdade’ de gerar trabalho não é feita com apoio de uma representação coletiva sindical, social ou política, ela aparece como uma performance individual”.


Judiciário

No contexto da Justiça Digital, as tecnologias são um fator decisivo na dominação social. Porque, de acordo com a pesquisadora, elas criariam formas de sociabilidade, de poder, mas mais do que isso, ela produz uma alienação, na medida que retira e tira a consciência sobre o próprio processo de trabalho. “Então, assim, muitas vezes as coisas estão acontecendo, no processo de trabalho, de forma invisível. E dada a tecnologia que mascara, nós nem nos damos conta”.

Viviane voltou a citar Marx quando ele afirma que ‘o trabalho morto domina o trabalho vivo’, ou seja, a substituição do trabalho humano. O objeto passa a ser sujeito das relações e passa a dominar o ser humano. Agora, isso se dá por conta dos algoritmos, que estão em todas as partes, são difíceis de resistir, inclusive porque eles estão na nuvem. “Quais os impactos da automação nos processos judiciais, se a tecnologia funcionar, sobre a subjetividade de quem faz o trabalho no processo? Nem tudo que aumenta a eficiência de nossas ações deve ser feito”.

O processo judicial se apoia em uma estrutura de trabalho humano. Ele não é feito sem a figura humana, como no caso de um servidor ou servidora que descobre que um demandante está na praia por causa de uma foto postada no Facebook. O processo (do trabalho) depende de o servidor agregar valor à estrutura normativa. “Mas é preciso compreender a relação de quem trabalha com essas ferramentas tecnológicas. Somos nós que humanizamos a máquina para que ela ocupe o lugar do artesão”.

A professora também abordou as consequências disso em um longo prazo na gestão de trabalho, a qual ignora os aspectos qualitativos e só se interessa pelos aspectos quantitativos, com produção do ato em série, no caso do Judiciário, os atos processuais. “Não estou dizendo que a inteligência artificial não pode ser interessante e benéfica. Mas há uma dificuldade de analisar a realidade enquanto ela acontece”, avaliou.

A professora finalizou sua apresentação respondendo a indagação inicial. Segundo ela, as máquinas substituirão em parte o trabalho humano, como já aconteceu no passado, existindo um rearranjo com novas tecnologias. Algumas profissões deixarão de existir e outras surgirão. As máquinas, no entanto, não substituirão completamente o trabalho humano, porque é da essência do modo de produção capitalista a apropriação de apropriação dos valores excedentes produzidos pelo trabalho humano, que é a 'mais-valia' e a base dos lucros.